1991
Drama (segundo o IMDb, segundo eu: Bizarro)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: William S. Burroughs (livro) e David Cronenberg
Drama (segundo o IMDb, segundo eu: Bizarro)
Direção: David Cronenberg
Roteiro: William S. Burroughs (livro) e David Cronenberg
Pense em um diretor obcecado por
sangue, pus, sexo, gore. Pense que esse diretor tem nas mãos um dos livros que
inspirou toda a sua carreira. Pense que ele tem a oportunidade de fazer sua
apoteose. Pense na minha decepção.
Bill
Lee (Peter Weller, para sempre o nosso Robocop) é um dedetizador que,
influenciado pela esposa, acaba se viciando no produto usado como inseticida.
Em seus delírios, comete um ato que o leva a fugir para o Norte da África e
mergulha em uma trama permeada de seres grotescos, enquanto se entrega ao
desejo de ser um escritor.
Comecemos pelo fato que David Cronenberg
escreveu e dirigiu filmes como Calafrios
(1975), Enraivecida na Fúria do Sexo
(1977) e, posteriormente, Crash –
Estranhos Prazeres (1996), todos uma ode à depravação. Além disso, ele
também é responsável por filmes como Videodrome:
A Síndrome do Vídeo (1983), A Mosca
(1986) e, posteriormente, eXistenZ
(1999), todos uma ode ao grotesco e ao bizarro.
Agora, vamos falar sobre Almoço Nu, o livro no qual Mistérios e Paixões (que droga de nome
horrível!) foi baseado. Burroughs o escreveu em meio às suas crises de
alucinações e delírios, durante os anos em que foi viciado em toda e qualquer
substância imaginável, principalmente a morfina, publicado em 1959, quando já
havia se curado do vício. Um livro considerado infilmável, e com razão.
Praticamente não uma há linha cronológica, muito menos o que se pode considerar
uma história. Temos um apanhado de cenas e situações onde o caralho, o cu e a
merda são os protagonistas*. Em meio a essas cenas, lá para mais da metade do
livro é possível perceber que alguns personagens aparecem com mais frequência. E
é somente através de uma tentativa de colocar suas pequenas histórias em um
contexto e de interligá-las, que ao final podemos considerar que realmente o
que lemos era um livro.
Em Almoço Nu, as pessoas são acinzentadas, esverdeadas, azuladas ou
amareladas, a depender do momento ou da droga que usam. Há uma galeria de
deformidades, como protuberâncias, feridas abertas, gente que derrete, gente
que desintegra, pessoas parecidas com répteis e viciadas em sêmen de mugwumps,
gente que bebe outras pessoas até consumi-las por inteiro, médicos fazendo
cirurgias em mictórios ou com abridores de lata. Sem contar os seres estranhos
e/ou indescritíveis, como babuínos de bunda pelada, latahs e os já citados mugwumps. Praticamente todos os personagens
fazem sexo, praticamente o tempo todo, 99% dos personagens são lgbt, mas se não
são, se vendem a qualquer um por um pouco de droga, qualquer que seja ela.
Agora, nós voltamos ao Cronenberg,
que declaradamente tem o Burroughs como uma de suas maiores inspirações – o que
faz TODO sentido – e que resolve adaptar o livro infilmável. Ele poderia fazer
absolutamente qualquer coisa que sua mente insana pudesse imaginar. Pois uma
adaptação desse livro comportaria. Ele poderia dar adeus à cronologia, fazer um
roteiro sem pé nem cabeça, ele poderia satisfazer toda a sua vontade de
praticamente fazer um pornô misturado com horror gore. Mas não. Em Mistérios e Paixões, não vemos um
peladinho, há um roteiro praticamente redondinho, com pessoas fisicamente
normaizinhas e, ah, para não dizer que não tem bizarro, tem mugwumps e insetos
gigantes.
Ok. Estou exagerando ao simplificar
o roteiro e os personagens. Porém, o que eu vi na tela não está nem perto da
demência do livro. Lógico que eu não acho que tinha que ser uma adaptação fiel.
É realmente infilmável. Mas era a grande chance do Cronenberg de tocar o
terror, de pirar, e ele desperdiçou! É frustrante terminar de ler aquela insanidade
toda e cair num filme no qual o máximo de bizarrice são cenas pontuais de
delírio, visivelmente separadas das cenas “reais”. Por quê? Fora o início do
filme e, talvez, um ou dois outros momentos, as cenas em que o Lee não está
drogado seriam totalmente desnecessárias. O filme tinha que ser 90% de
alucinação!
Aliás, quero falar sobre o Lee um
pouquinho. Uma das melhores coisas desse filme foi a ideia de trazer a vida real
do Burroughs para o roteiro. O caso em que ele mata a esposa ao brincar de
Guilherme Tell é verídico. E Burroughs realmente fugiu para o Norte da África
após cometer o crime acidental. Colocar isso no filme, mesmo não estando no
livro, é genial. Mas que porcaria é essa de o Lee não ser gay?! O Burroughs
era! É uma droga ter que ver ele se reafirmando o-tempo-todo, como se fosse
algum demérito do filme representar a sexualidade do protagonista tal como era
a da pessoa na qual foi baseada.
Mas, apesar de decepcionante, o
filme não é um fracasso completo – nem perto disso. Como disse, trazer a vida
do Burroughs para a tela foi genial, inclusive porque é o ponto que possibilita
a linearidade ao roteiro. Veja bem, não acho ruim a linearidade, só acho que
ficou tudo muito redondinho. Além disso, trazer uma máquina de escrever-inseto
para a história ficou perfeito. E todos os momentos de alucinação são pequenas
obras-primas. Também é uma sacada inteligentíssima colocar trechos do livro
declamados por Lee e, eventualmente, por outro personagem lendo seus textos. Aliás,
o Cronenberg é um puta diretor. Por mais que o roteiro não seja o meu
preferido, em termos de direção não consigo criticar nada. Ele cria um clima
noir que tem tudo a ver e faz cenas memoráveis.
Eu sei que a minha decepção vai
acabar abrandando (já está, na verdade). Acho que ainda estou muito intoxicada
com o livro e perdi a noção do que é aceitável e normal e do que é depravação e
bizarrice. E imagino que futuramente irei gostar mais do filme. É o tipo de
filme que vai crescendo na gente, que quanto mais a gente lembra dele, mais
descobre pequenas pérolas. O Cronenberg sabe fazer filmes assim. Geralmente a
gente sai enojado, depois pensa bem e vai descobrindo que gostou.
Na verdade, me sito uma farsa,
hipócrita. Que cara de pau a minha, criticar o mestre Cronenberg enquanto
escrevo um texto tão... normal. Essa também era a minha chance de pirar o
cabeção, falar palavrões, não fazer sentido. E desperdicei.
* Desculpe-me o palavreado, mas é impossível
falar de Burroughs em termos mais amenos.
Um comentário:
Hehehe!!! Estamos de novo vendo voce escrevendo.Voce é boa escrevendo!Alias não li o livro nem vi o filme.Acho que nem iria ver. Não gosto de terror nem bizarrice. Alucinações sim, poderia ficar interessada. Mas lendo voce falar dessas bizarrices, aí sim fica lega!!!!
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